10 de março de 2010

"INDIO NÃO É FRÁGIL NEM IDIOTA"

Etnolinguista e missionária da JOCUM, ela defende a presença de evangélicos nas tribos do país

Marcelo Santos

Quando saiu de Belo Horizonte (MG) aos 17 anos para juntar-se à organização Jovens Com Uma Missão (JOCUM), Bráulia Inês Ribeiro, 45, não imaginava que se tornaria uma das missionárias mais conhecidas do Brasil. Também não fazia ideia de que, por anos a fio, trabalharia entre povos isolados da Amazônia, o que a tornaria a principal porta-voz da missão em questões indígenas. Ela também não poderia imaginar que, em 2005, estaria no centro de uma polêmica reportagem de TV, na qual a JOCUM seria acusada de promover a destruição da cultura dos índios por tentar livrar da morte duas crianças suruwahas, do Amazonas - como noticiado por Graça/Show da Fé, na reportagem Um crime diferente (edição 76).

Bráulia, na época, era presidente da missão, que atuava com certa tranquilidade entre os silvícolas. Mas a tal reportagem de TV, cuja repercussão perdura até hoje - desdobrando-se em outras acusações infundadas, como mostrado em Graça/Show da Fé na reportagem Dossiê do barulho (edição 111) -, colocou a JOCUM no centro da delicada discussão acerca da presença missionária entre os índios brasileiros.

Casada com o missionário Reinaldo Cazão Ribeiro, dirigente da JOCUM de Porto Velho (RO), Bráulia é formada em etnolinguística pela Universidade das Nações, no Havaí (EUA), e é mestre em Linguística Antropológica pela Universidade Federal de Rondônia. Autora do livro O chamado Radical (editora Atos) - no qual relata algumas de suas primeiras experiências entre os índios -, ela também presta assessoria linguística e antropológica às equipes da instituição que trabalham nas tribos, além de lecionar no campus da Universidade das Nações, em Porto Velho.

Ela atendeu a reportagem de Graça/Show da Fé para falar sobre o atual e preocupante cenário para as missões evangélicas entre os indígenas, as quais, cada vez mais, encontram diversas dificuldades para cumprir a vocação de servir os índios e proclamar o Evangelho da salvação.

A JOCUM tem sido atacada devido à sua presença entre os índios. São várias acusações, que chegam por meio de programas de TV, dossiês e reportagens em revistas de circulação nacional. Por que a missão tem protagonizado essa polêmica?

Creio que fomos os primeiros a expor publicamente as incoerências da política indigenista brasileira, principalmente no caso da Tititu, a menina suruwaha que nasceu com defeito congênito e deveria ter sido operada pelo Hospital das Clínicas de São Paulo. A polêmica sobre a questão, o procurador do Ministério Público dizendo que ela não poderia ser operada simplesmente porque era indígena, a incompetência flagrante da Fundação Nacional do Indio (Funai) e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para lidar com o caso mostraram ao Brasil o lado sombrio do indigenismo tão romântico praticado no país. E a JOCUM foi a protagonista nisso. Depois desse acontecimento, passamos a lidar com a mídia nacional constantemente.

O caso de Tititu foi emblemático. Mas a criança, depois de operada, morreu no início deste ano. Por quê?

Depois da cirurgia, a menina precisava de cuidados médicos periódicos. A medicação não poderia ser interrompida de repente, pois poderia causar algum tipo de dano renal e, consequentemente, uma desidratação fatal. O pai dela é inteligente e tinha muito compromisso com a saúde da filha. Moisés, nosso missionário na área, ensinou Naru, o pai, a medicá-Ia, que o fez corretamente. Mas a Funasa nem sempre enviava a medicação a tempo, apesar de ser um remédio barato e bastante acessível. Muitas vezes, nossa equipe teve de ligar para Manaus e até para Brasília, a fim de exigir que a Funasa enviasse a medicação. Houve uma ocasião em que eles chegaram a jogar, de avião, um medicamento errado, muito mais forte. Se o missionário não estivesse na área, a menina teria morrido ao receber aquele remédio. Em 2008, fomos proibidos, oficialmente, de estar na área, e, em janeiro deste ano, a menina morreu de desidratação, o que só pode ter sido causado pela falta do medicamento. Imagino que seus pais devem ter sofrido muito ao perder a menina por quem tanto lutaram e que sofreram para salvar. Tivemos acesso à gravação da conversa do técnico de saúde que estava na área e do médico que lhe dava apoio na cidade de Lábrea (AM). Parecia haver um desconhecimento total do prontuário dela e da medicação que ela deveria tomar.

A denúncia sobre o infanticídio (a prática indígena de assassinar bebês e crianças com defeitos congênitos) "aqueceu" a discussão sobre o papel dos missionários nas tribos. Enquanto uns acreditam que os índios devem ter o direito de conhecer Jesus, outros defendem que o papel do missionário deve limitar-se à prestação de ajuda humanitária. Há um consenso sobre como fazer missão transcultural?

Creio que limitar o acesso de um grupo à informação de qualquer espécie é privá-Io de um direito humano essencial. As missões transculturais, em sua grande maioria, são conscienciosas e preparam bem seus missionários. Levar o conhecimento do Evangelho ao índio não é um ato de imposição religiosa, mas consiste em dar a eles acesso a uma informação que, na verdade, tem por objetivo completar sua visão de mundo, não destruir tal entendimento, como alegam alguns. O índio não é frágil nem idiota, como pretendem os defensores do isolamento cultural. Eles sabem muito bem separar o "joio do trigo" e são capazes de aceitar apenas o que Ihes interessa.

O que a Igreja Evangélica precisa saber sobre a presença missionária entre os indígenas, para que o debate sobre as missões junto aos índios ultrapasse os guetos religiosos e contagie toda a sociedade?

A questão principal é nossa visão de quem é o índio. Eles são seres humanos como nós e, portanto, possuem direito à cidadania plena, a garantias essenciais asseguradas pelo governo, ou serão eles grupos humanos "primitivos", que têm de ser preservados de alguma forma? Se permitirmos que o governo trate seus cidadãos indígenas com injustiça, fundamentado em uma falácia sobre sua identidade, seremos coniventes com uma visão de sociedade que, um dia, vai nos prejudicar diretamente. Nosso papel como sal da terra e luz do mundo (Mt 5.13, 14) é prover a sociedade com referências sobre o valor intrínseco e incondicional de cada indivíduo, requerendo de nossos governantes leis que respeitem esse valor. A Igreja Evangélica no Brasil tem sido conivente com a visão governamental dos índios incapazes e menos humanos. Por muitos anos, temos permitido que uma legislação preconceituosa separe humanos de humanos e determine a falta de liberdade e o apartheid civil dos povos indígenas. A questão dos índios, portanto, não é religiosa, mas de direitos humanos essenciais, liberdade civil e justiça social.

(Revista Graça Show da Fé, edição 124)

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